A síndrome dos alvos errados

por Leon K. Nunes

A greve dos policiais militares que gerou, no sentido indireto, caos a Salvador nos últimos dias, suscitou alguns questionamentos que expressam não somente uma falta de solidariedade pela luta justa dos policiais pelo que é de seu direito, mas incompreensão a respeito do papel que todo indivíduo cumpre, como cidadão ou como um ser social – expressando as contradições deste social e político -, bem como uma falta de entendimento acerca de quem são os culpados do quadro a que estamos hoje submetidos.

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Muito em decorrência dos últimos eventos, tanto no Brasil como mundo afora, os policiais em geral são vistos como cão de guarda pelos donos do poder, ou seja, seres incapazes de questionar a própria tarefa a que são destinados, prontos sempre para bater em manifestantes e fechar os olhos para os que tentam sensibilizá-los. São por isso os policiais culpados? Será que não são os policiais os mesmos profissionais que fecham os olhos para as reivindicações alheias, como no caso dos trabalhadores da educação? Quem nunca viu professor levantando algum tipo de assédio moral no estudante que faltasse a sua aula para participar de manifestação política? Ou, no sentido inverso, quem nunca viu estudantes – 0s mesmos que são alvos de policiais quando se manifestam – pretendendo restringir o direito de seus professores de reivindicarem melhores condições de trabalho, exigindo que retornem ao trabalho e levantando o contra-argumento de que são eles, os estudantes, os mais prejudicados com a greve (vaga ilusão)?

É evidente, não por motivos que explanarei (pois é uma questão paralela, e certamente mais extensa), que nenhuma dessas categorias age assim deliberadamente, bem como é evidente que este tipo de pensamento não é dominante (e mesmo quando é, está longe de ser unânime). O exemplo é extraído para que reflitamos acerca daquilo que consideramos o alvo da nossa indignação e da nossa reivindicação, quando nos levantamos numa dada circunstância. Questionar o método dos PMs em greve (não me refiro às violências públicas; isto está fora de questão) não é um ato solidário, e não sendo, torna-se um ato que somente enfraquece as massas organizadas. Não se tem perspectiva de mudança de país se não se tem um entendimento de que cada categoria em luta vale por todas, e todas as categorias em luta o estão também por uma só. Ou seja, é preciso ter uma visão crítica e científica da dinâmica dos movimentos e da dinâmica do poder; visão crítica o suficiente para entender que mesmo o policial que nos bate também merece direitos, também tem filhos estudantes que merecem direitos, também tem pais aposentados que merecem direitos, et cetera.

No último ano, com a Revolução Árabe, os Indignados, os movimentos de ocupação mundo afora, ao mesmo tempo em que o espírito de mobilização e crítica se reavivou nas populações que pareciam anestesiadas, elas parecem não compreender o sentido de sua crítica, a ponto de não saber mirá-las nos alvos corretos – porque não sabem quais são; e não sabendo quais são os alvos, não se pode saber qual é o método.

Isso explica porque os movimentos que afloraram no norte da África ainda não renderam uma solução que possamos considerar prolífica; por isso que os movimentos de rebelião na Inglaterra em nada serviram aos imigrantes da periferia; o Occupy Wall Street lançou questionamentos úteis ao paradigma vigente – e talvez este tenha sido o principal movimento de 2011, pela natureza e pelo local em que se deu -, mas não abriu as portas para novos paradigmas. Isso porque, mesmo com os questionamentos, não há a quebra do paradigma; e em que paradigma vivemos? O paradigma neoliberal, do individualismo, do pragmatismo. É o pragmatismo que leva a crer que o movimento #ForaMicarla, que eclodiu em Natal, é um movimento contra a Sra. Micarla de Sousa, e não com uma prática oligárquica que há décadas tem perdurado no estado, ou o que leva a pensar que os culpados do massacre de Pinheirinho são os policiais que promoveram a invasão. É o individualismo que leva o manifestante a puxar como palavra de ordem a famosa sentença “você aí parado / também é explorado”, apontando para os cidadãos que assistem às passeatas de suas paradas de ônibus mas não se unem a ela; ora, sermos todos explorados não digna ninguém a estar com a razão diante de outro. Se somos todos consciências formadas essencialmente a partir de nossa existência social, entender quem se manifesta deve ser tão natural e compreensível como entender quem aceita a dominação que parece invisível.

É sempre positivo quando forças progressistas se unem no sentido de demarcar espaço; mas uma mobilização popular não pode ser analisada de modo santuarista, impassível de receber críticas pela sua natureza. As rebeliões populares na Tunísia, Egito e outros países não geraram perspectivas positivas porque tinham como consigna apenas o NÃO; mas não basta negar uma condição para se alcançar a mudança. Não basta exigir uma “nova democracia”, se não se tem um entendimento de em que democracia vivemos, para diagnosticar suas falhas e saber que democracia queremos. Mais do que nunca, se faz atual o entendimento clássico de que sem uma teoria revolucionária, não pode haver movimento revolucionário consequente. A negação, em si, não leva à transformação. Pelo contrário. Se não vem acompanhada de um arcabouço subjetivo e objetivo, tende a somente permitir que os elementos que detém o poder político estabeleçam suas remodelações, suas atualizações, à margem dos que eram os reais interessados pelas mudanças. Ou seja, tira-se do poder no Egito o Mubarak e se instala uma junta militar, presidindo o país há um ano, e dando tempo suficiente para que os conchavistas egípcios, os articuladores da Liga Árabe e os imperialistas euroamericanos estudem que peças devem ocupar o poder neste país pelas próximas décadas; assim também na Líbia; assim também na Tunísia. A Síria persiste sendo o último baluarte de autonomia no Mediterrâneo – vai resistir? Saberemos nas próximas semanas. Se não resistir, o detino dela sacrará o mesmo que vem ocorrendo nos países citados, além de outros mais.

Estamos em 2012, mas ainda há tempo de evitar que 2011 se transforme em um 1968. O legado de 1968, apesar de significativo do ponto de vista dos direitos civis – e isso deve ser sempre ressaltado -, foi insuficiente para quebrar o paradigma então vigente: como fugir do capitalismo selvagem e da burocracia que havia se tornado a União Soviética de Krushev? Não conseguiu ir além. Morreu no Maio de 68, na Primavera de Praga, na Passeata dos Cem Mil, no flower-power. A lição, porém, está disponível para que a estudemos, saibamos onde aqueles jovens erraram, para que não erremos agora. A União Soviética não existe mais e aquilo que pensavam ser o fim da História gerou contradições muito maiores que as vigentes até vinte anos atrás. É preciso estar calejado para entender a realidade e nela saber atuar. Não encontraremos a revolução ao virar a próxima esquina, mas se não ousarmos virá-la, nunca chegarão as outras esquinas que precisaremos enfrentar para alcançarmos o país e o mundo pelo qual enfim lutamos. Nada é impossível; esta deve ser a única sentença inquestionável.

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